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Foto do escritorLuiza Cruz

Encontro: O amor (e o ódio) nos tempos do cólera

Atualizado: 29 de dez. de 2021



Gabriel García Marquez (1927 - 2014) que me permita usar da inspiração do título de um de seus livros mais clássicos, "O Amor nos tempos do cólera” (1985), para abordar algo realmente tão contemporâneo quanto inerente ao ser humano: a ambivalência. Amor e ódio: dois lados da mesma moeda?

Digo contemporâneo fazendo relação com a conjuntura política e social tão comentada, analisada e problematizada neste momento histórico. Estamos numa virada de século importante que, a partir da economia globalizada e da interferência brutal da internet na vida e rotina, vivemos uma constante luta de hábitos, valores e costumes que buscam se adaptar ao novo mundo, às novas exigências.

Definitivamente, estamos acelerados nas mudanças e usando da forma como é possível valores do século passado para tentarmos abordar e compreender os novos laços sociais. É como se, no final das contas, tivéssemos crescido de tamanho, mas usando as mesmas calças, que agora ficaram curtas!


Certamente esse clima de desadaptação gera um ambiente propício a novos embates. Diante de um cenário que possui ferramentas simbólicas que não mais cabem no século XXI o que ocorre? Novas buscas por apropriações do mundo: ideológicas, políticas de organização social e econômicas. Estamos, portanto, nesse momento de disputa que por isso envolve tanto ódio.


A ambivalência entre amor e ódio no nível pessoal é antiga e se faz presente e tão atual quanto antes, no século passado. De que se trata? Para explicações científicas e psicanalíticas podemos retomar conceitos como propostos por Melanie Klein em sua exposição sobre a ambivalência na relação mães-filhos ou tantos outros autores. Mas não iremos por esse caminho hoje, pois mais fácil do que compreender teoricamente é perceber a sua presença nas próprias vivências cotidianas:


Filho fazendo birra: o que vão pensar da educação que dei pra ele? Levanta daí menino!
Briga de casal: será que meu amor supera meu ódio para justificar eu me manter no relacionamento?
Irmãos: O brinquedo é meu, não mexe! A mãe é minha, sai pra lá! Meu pai gosta mais de mim do que você...

No geral, situações que expõem falhas, impotências, insuficiências, ou seja, características que normalmente as pessoas se esforçam a esconder, disparam aquela sensação de desconforto e geram reações instintivas de proteção - como o ódio, o “famoso” que na própria cultura se permite aparecer por algumas brechas: ditados populares, ironias, camuflados via perfis de redes sociais, metáforas, forças de expressão.

Um "tenho vontade de te matar" durante uma briga em tom de sarcasmo expressa realmente um desejo de findar o problema que está sendo discutido. Essas brechas na cultura que permitem a expressão do ódio viabilizam essa descarga pela via verbal, impedindo que haja uma passagem ao ato propriamente. O ato vem, portanto, quando a linguagem não deu conta de barrar!


Esse extenso e delicioso tema deu contornos à discussão presencial proposta por mim e Andrea Raquel, parceira e psicóloga de Piracicaba, que ocorreu em seu consultório no dia 28 de Novembro de 2019.


Assim como é o objeto de estudo da psicologia e psicanálise encontrar relações entre a organização social e as questões subjetivas íntimas, particulares de cada sujeito, também tivemos essa intenção a partir da problemática que deu o tom do encontro: as relações ambivalentes presentes na família. Abordamos dessa forma a complexidade das relações familiares e estas analisadas numa conjuntura social maior, a cultura.


Portanto, muito diferente da família perfeita e dita "normal", o que é comum - se tudo correr bem! - é que nas relações pais/mães/filhos em casa, haja conflitos - e muitos - e, claro, envolvendo amor e ódio. Isso porque as relações se constroem a partir do ir e vir entre desejos e faltas e a sensação de que falta gera frustração, medo, impotência, ódio.


Fato é que o homem, por mais que muitos achem difícil admitir, é um ser que para sobreviver depende de outro. A relação com o outro, além de ser garantidora de sobrevivência, é constituinte em termos de proporcionar prazeres, diversões, alívios, ou seja, condições que alimentam também a alma! Sendo assim, a dependência é total e absoluta, principalmente no início da vida, tanto do ponto de vista biológico, corporal e carnal, quanto emocional, afetivo. Mas sejamos claros neste ponto. Não foi porque a dependência foi constituinte que deverá permanecer da mesma forma por toda vida!

- Agora como lidar com as relações afetivas a partir desse fato e encontrar alternativas menos submissas, que gerem menos sofrimento, é trabalho de uma vida (e como dá trabalho!) - e além disso, é tema para muita conversa que virá por aqui e presencialmente!

Usamos para este encontro presencial duas maravilhosas referências literárias que nos permitiram ilustrar a questão da ambivalência afetiva nas relações.


"Receitas para se fazer um monstro" é um livro de contos do Mário Rodrigues em que o autor, a partir de contos rápidos, cortantes e muito ritmados, explora vivências de conflitos internos de um garoto, desde sua infância até a vida adulta, e como ele vai lidando perversamente com os desafios que se apresentam. O livro ganhou prêmio como melhor livro de contos pelo SESC em 2016.

"Precisamos falar sobre Kevin" é mais famoso por ter virado filme em 2011. O livro, escrito em 2003, parte das diversas tragédias de massacres escolares, principalmente ocorridas nos Estados Unidos (como “Columbine”, um dos mais conhecidos), em que normalmente alunos ou ex-alunos entram em suas escolas e assassinam colegas, professores e funcionários. Kevin seria o personagem responsável por um dos massacres. O livro, portanto, reúne um conjunto de cartas que a mãe de Kevin escreve ao pai e a si mesma, analisando sua trajetória de vida em pontos como a maternidade, os supostos motivos que levaram o filho a cometer o crime, seu casamento, sua carreira e família.


Pudemos refletir as questões afetivas dos personagens que chamaram a atenção e, principalmente, a forma como as obras tocaram cada um dos participantes em suas histórias e vivências pessoais. Que há identificação direta com as histórias dos personagens não há dúvidas, pois, vivências de ódio todos nós já tivemos. E, diga-se de passagem, o encontro foi enriquecedor por conta disso!


Se por aqui em formato de artigo o tema já deu pano pra manga, imagine no encontro presencial. E foi realmente muito proveitoso. Esperamos os próximos que estão por vir.


Para conhecer mais do trabalho da Andréa Raquel, acesse aqui.


Até breve!



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