Recentemente fui convidada pelo Projeto Sublimação, que sempre aborda psicanálise através da arte, para falar do filme de enorme repercussão "A Filha Perdida" de Maggie Gyllenhaal - disponível acima ou pelo link. Com enorme prazer em me juntar às discussões, aqui destaco alguns pontos que levaram essa história, afinal, a conquistar e ampliar tanto o debate, a respeito, principalmente, do lugar da maternidade e da mulher na sociedade.
Carregado de simbolismos a cada cena, foto e diálogo, "A Filha Perdida" originalmente como livro de Elena Ferrante, e agora em formato de audiovisual, apresenta camadas infindáveis de análise, inclusive do contexto mais amplo, sócio-cultural, atual.
Na pele da personagem principal, Leda, brilhantemente atuado por Olívia Colman, acompanhamos esses pontos de conflitos do feminino aos traumas relacionados às "funções de mãe", ou mulher-mãe na sociedade. Qual o poder e autonomia reais da mulher na sociedade? E o da mulher-mãe?
A narrativa transcorre pela viagem de férias de Leda numa ilha isolada da Grécia. Sozinha, longe das filhas, agora adultas, que ficaram com o pai de quem é divorciada, conhecemos aos poucos sua história conforme se relaciona e dialoga com as outras pessoas da ilha.
Em uma narrativa mais densa, marcada por silêncios e trazendo certa nuance de suspense, Leda se revela e nos leva ao passado com sua versão jovem. Acompanhando ambas, conseguimos adentrar em suas zonas traumáticas, da ordem do inexplicável, do insuportável, do irreconciliável e de muito sofrimento vivenciadas por aquela mulher em interlocução com sua sexualidade, sua profissão e carreira, sua vida conjugal, com suas filhas e com seu passado.
Acompanhamos seu arrebatamento e exaustão pela culpa que sente da mãe que conseguiu ser. Assistimos Leda entravar conflitos com seu lugar no mundo, na trincheira sobre o que pode ou não fazer enquanto mulher ou mulher-mãe, o que se autoriza por si mesma, ou o que é autorizado pelos outros, pela comunidade, arrastando, ao mesmo tempo, questões do passado das quais não consegue se desvencilhar, em seu lugar de filha.
"Feminino e Trauma" é o nome do artigo na tentativa de, assim como Leda, compreendermos o que se silencia, e com isso exaure, do lugar da mulher enquanto papel social, agravado pelo lugar da mãe enquanto papel social, que normalmente tende a suplantar, engolir a primeira: O lugar da mulher que desaparece frente à exaustão da mãe.
Na sociedade numa leitura forçada e idealizada, se sufoca uma mulher para se nascer uma mãe.
Se morre um sujeito que deseja para nascer outro que corresponde às exigências sociais, que corresponde, do lugar das tradições, do que se "espera" de uma mãe, do que se espera desse ideal, para que, assim, a mãe se torne uma função social "exclusiva, impecável e incansável" de cuidar do futuro da prole para a comunidade.
A herança deixada pela mulher pelas tradições não passa pelo dinheiro ou poder, mas pelo zelo, cuidado, com a próxima geração. E sua posição responde de um lugar apassivado, condescendente, acrítico e de suporte narcísico a outros protagonistas (filhos ou parceiros).
Apesar disso, na prática, as mulheres que conquistaram o mercado de trabalho de forma ainda mais expressiva nos últimos anos acessando as cadeiras de relevância, adquirindo poder, força e ingerência, ganham novo lugar de protagonismo e marcam, portanto, um novo momento, ponto de intenso conflito com essas tradições.
Mulheres que ganham protagonismo e função para além das obrigações tradicionais de seu papel social experienciam no dia-adia um acúmulo de funções e responsabilidades que se transformam numa empreitada desgastante e absolutamente contraditória.
A mulher-desejo que se realizava antes dos filhos a partir de outras atividades passa a ser cobrada de ter a família como fonte de satisfação e dedicação. Sua realização além a prole fica encurralada, entrincheirada e desgastante.
No entanto, a mulher de fato possui um poder ativo não somente nessa pergunta sobre o que desejam dela, o que esperam dela, mas do que ela deseja da sociedade, e o que ela espera da sociedade. Pois os desejos pessoais ainda existem de uma mulher, mesmo quando ela adquire nova atividade enquanto mãe.
É isso que Leda vem a mostrar e que a sociedade toma muitas vezes como provocação: Por que uma mulher desejante incomoda tanto?
No filme, porém, assistimos a figura masculina, enquanto função na paternidade, com certo questionamento e crítica acompanhando o olhar da personagem. O que vemos sobre os homens ao longo do filme?
Pais ausentes na criação dos filhos, porém , em alguns casos, presentes na estruturação financeira da família, entendidos como representantes da normalidade.
Por outro lado, no ponto nevrálgico de crítica do filme, temos uma mãe que se ausenta na criação dos filhos e como ela é vista e tratada a partir disso.
Olhar para a história protagonizada por Leda é olhar para a nossa cultura hoje, como se fosse uma foto. Um registro do tempo presente e seus pontos de conflito. Em cada cena, em cada interação com outro personagem, ali se representam os pontos traumáticos da tradição também presentes através do embate entre gêneros: o feminino e o masculino um enquanto o negativo umdo outro, correlatos, complementares, opostos.
A boneca, como símbolo desse conflito, ocupa esse campo do non-sense, pura angústia. São três momentos que a figura da boneca aparece amarrando a tensão da vida da personagem.
I - A boneca ganhada por Leda na infância. Ninada e construída nos ideais de mãe "perfeitos". Uma infância vivida com muita angústia, por ela relatado ao longo da filme.
II - A boneca que ela assiste num primeiro momento na interação de uma filha com uma mãe que tambem passavam férias na mesma praia. Que representa a cena de paz e divertimento que faltou em sua vivência com as filhas.
III - A boneca perdida da criança na praia, que desdobra o suspense da trama e que deixo ao curioso a assistir para conhecer o desfecho.
Não podemos esquecer o nome do filme que revela o que Leda, a nível subjetivo e particular na relação com seu núcleo familiar não conseguiu resgatar, numa experiência angustiante que proporcionou às filhas, como o teve em sua própria história em seu lugar de filha: Não sentiu que pôde, enquanto mãe, fazer diferente.
Rendida pelas repetições, vemos um flerte nessa oscilação entre a resistência e a desistência. Uma mulher que não sobrevive. Ou sobrevive morrendo por dentro. Uma angústia totalizante.
A boneca, também símbolo dessa angústia acumula seus dilemas cabais e mortíferos. A culpa, as perguntas sobre o que é ser mulher, o que é ser mãe, o que é ser uma mulher-mãe, ou mesmo, o que seria uma "boa mãe". Ainda, o que é ser mulher para um outro - para um homem?
No ponto que estamos na cultura hoje, na prática do dia-a-dia, vemos que nunca o amor romântico que enseja toda essa contraposição entre gêneros e seus respectivos papéis sociais foi tão questionada e sufocada, a ponto de se mostrar impraticável, gerando mais ou menos angústia a cada pessoa.
O caminho tem sido colocar um pouco de lado essas exigências a partir dos papéis sociais ("coisas de menino" e "coisas de menina") por gêneros de forma que a vida financeira, o cuidado com os filhos, os projetos familiares agora podem ser pensados sem hierarquias e divisões pré-estabelecidas e partilhados e divididos do que se repensa e se constrói propriamente a dois, a partir da personalidade de cada um do casal.
"Feminino & Trauma" revelam a herança de um tempo traumático vivido pelo corpo, pelo que se representa do corpo e funções do feminino da sociedade. São as marcas feitas nesse corpo ao longo da história. Repensar, portanto o lugar de passividade é sobre romper com algumas estruturas idealizadas inclusive a respeito da maternidade na vida de uma mulher.
O feminino se configura como trauma no filme, pois quer falar. Quer se posicionar. Quer escolher. E com isso, rompe com o que é esperado. O feminino rompe com o trauma quando passa a falar de si em primeira pessoa e não coadjuvante. O feminino deixa de ser trauma quando passa a ganhar espaço de relevância, por exemplo, no debate público, como o fez no filme.
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